06 março, 2006

S. José (II)

Hoje abri uma caixa de correio electrónico pouco usada, encontrei uma série de e-mails que me remeteram para o meu ainda menos usado perfil no orkut. Quando entrei vi aquela engraçada frase do dia, que no meu caso dizia qualquer coisa como “A sociedade prepara o crime, o criminoso comete-o”. Esta frase parece ter sido, talvez pelo seu conteúdo óbvio, o gatilho que me fez voltar a escrever sobre o tema do crime do Porto.

Ora, como pude ver no telejornal de domingo (o primeiro que vejo em dias, por razões profissionais), os media já mostram um certo esquecimento quanto aos acontecimentos da semana passada, e vão voltando lentamente a apimentar as complicadas questões do relacionamento entre o mundo ocidental e o Islão. Pelo meu lado, embora este não pareça ser este o meu último post que sobre a morte da Gi, faço variar a minha reacção entre o alívio por não termos entrado numa onda obsessiva de noticias sem interesse e o desânimo por se ter enterrado o caso e a memória antes do cadáver. Por outro lado, ainda é lamentavelmente compreensível que não se queira defender em praça pública os direitos de um homossexual enquanto ser humano.

Ora, é comum dizer-se que o povo português é de brandos costumes... agora, se os indivíduos que compõem um povo dizem que esse povo, enquanto colectivo é de brandos costumes, talvez seja esse povo constituído por indivíduos que, individualmente, não tenham nada de brando nos costumes deles. E talvez isso se note bem na forma branda como vemos os povo intrometer-e na vida alheia e na forma branda como se defendem a moral e os bons costumes de um povo que nunca os praticou. Este povo, dito de brandos costumes, costuma bradar bastante ser ele quem mais ordena, apesar de com tamanha taxa de analfabetismo funcional, bem que um pouco de bom senso recomendaria a entrega provisória do poder a alguém um pouco mais instruído. Este povo que é incapaz de ver alguém diferente a entrar-lhe pelas suas portas e cuja ignorância nos tem salvo da eleição de um qualquer partido de extremos. Este povo de Portugal tem, a meu ver, mais de arrogante do que de brando, e terá sido nesse ambiente de arrogância, intolerância e omnipotência da massa inculta que o crime foi forjado. Depois, como povo medroso que somos, os que dizem pelas ruas que aos homossexuais era dar-lhe porrada para aprenderem calaram-se perante o crime. Continuamos assim a nossa caminhada hipócrita, encorajando em pensamento o que não desejamos que seja levado avante por actos.

E no meio disto tudo esquecemos que também nós, cidadãos comuns deste país fomos vitimas deste crime. Todos os que se chocaram, todos os que se revoltaram, todos os que escreveram ou meditaram viram, com desânimo, o rumo que a nossa sociedade leva. Todos nós somos Giselas e é nesta condição dupla de criminosos e vitimas que temos que repensar o modo como a sociedade portuguesa enfrenta um mundo cada vez mais diversificado.

01 março, 2006

Memória!

E se o estimado leitor hoje acordasse e se sentisse num país de juízes parciais, onde a máxima do povo ser quem mais ordena ganha força de lei moral e a necessidade de manter a memória do passado surge mais como uma forma de ocultação de males mais recentes do que de um forma de respeito pela história? Parece-lhe este país familiar? Pois bem, eu hoje quase ia devolvendo o pequeno almoço à troposfera quando li o post de ontem do Apenso. Escreve o nosso amiguinho sem nome do seu escândalo por o antigo edifício da PIDE estar prestes a ser transformado num conjunto de apartamentos de luxo.

Ora, este protesto que no primeiro parágrafo até parece ser uma preocupação em manter um pedaço da história do país rapidamente se transforma numa espécie de propaganda contra o sistema democrático ocidental. E segue então o nosso amiguinho por aí abaixo, com umas frases soltas, em que lá dá a imagem de que com a reconstrução do edifício se está a lava a história, mas tal é a quantidade de frases feitas que, honestamente, deixei de saber qual das opções seria um maior insulto para a história portuguesa: se dar aval à dita obra, se dar ouvidos a este cérebro lavado. Como qualquer pessoa que preza a conservação da memória, também sou mais favorável à criação de um museu sobre a história do século XX naquele local... mas um museu, não um instrumento de propaganda.

Mas se o amiguinho quer, o amiguinho tem! Falemos então um pouco de história. Quando era miúdo apoiava e gostava muito da República Democrática Alemã, e não entendia o porquê de o nosso Portugal democrático não ter tantos problemas de relacionamento com esse país. Foi preciso que muros e cortinas caíssem à frente dos meus olhos para ver o paradoxo das duas Alemanha: a que se diz democrática era na verdade uma ditadura comunista e a outra, federal, que eu dantes entendia que era oposta à democrática e, portanto, uma ditadura, era uma economia de mercado próspera onde se podia circular e falar em liberdade, sem censuras nem polícia política. Foi então que me apercebi que democracia é um conceito diferente para democratas e comunistas. A minha democracia não é a do amiguinho, e, para nossa grande infelicidade (mas mais sua que minha!) nenhum dos nossos conceitos encaixa na realidade portuguesa. Ora, tenho aqui em casa uma série de antigos jornais e revistas que trazem escrita no seu cabeçalho a frase “Visado pela comissão de censura”. Acho que bastaria esta prova documental para deitar por terra a sua pseudo-tese de alguém andar a esconder as realidades da censura.

Mas o nosso amiguinho continua no seu ar de revolucionário a criticar reformas e condecorações de antigos agentes da polícia política como se de privilégios se tratassem. A menos que ache que só deveria ser permitido o livre pensamento para quem apoiar ditaduras de esquerda, acho que se esses homens concordam ou não com o regime do Estado Novo (fascismo foi em Itália e se o amiguinho entendesse um pouco de história veria que, apesar se serem ambas bastante repressivas, são formas de governo diferentes) não tem nada a ver com a reforma que qualquer pessoa deverá receber quando executa o seu papel em termos profissionais, e esses homens foram, para todos os efeitos, funcionários do estado. Ora, se o amiguinho acha isto um privilégio, recordo-lhe que privilégio significa, etimologicamente «lei privada», ou seja, uma lei feita à medida de alguns indivíduos. Num país onde se esperou pela prescrição dos processos das FP25 e do assassinato de Sá-Carneiro para se começarem a promulgar leis que permitam a agilização da justiça, parece que os verdadeiros privilegiados foram os assassinos e bombistas que trabalharam em nome desse seu conceito estranho de democracia...